Campo Grande (MS) - Há cinco temporadas, a Stock Car enfrentara seu momento mais dramático até o acidente fatal de Rafael Sperafico, em dezembro passado. Na ocasião, uma fatalidade quebrara um jejum curto de dois anos sem mortes na categoria, desde o piloto Laércio Justino, em Brasília. Só que, desta vez, a vítima não foi um piloto. Mas, sim, um fotógrafo.
Raphael Lima Pereira, de 19 anos, trabalhava para o jornal local "Raça" e foi escalado para acompanhar a oitava etapa da temporada 2003, marcada para o feriado de 7 de setembro no circuito, que recebia a Stock Car V8 pela segunda vez desde sua inauguração, em 2001.
E, para registrar imagens da prova, Raphael recebera da publicação duas pequenas câmeras digitais amadoras. "Antigamente, não havia preocupação sobre onde podia ficar, se o cara tinha condições de fotografar, pois a categoria não tinha tanta mídia como hoje em dia", comentou Marcelo Eduardo Braga, assessor da categoria entre 2000 e 2002, e de 2006 em diante.
Responsável pela parte de imprensa na época, o jornalista Milton Alves afirmou que sempre pedia aos fotógrafos para não ultrapassarem os locais seguros, indicados pela direção de prova. Só que nem sempre as orientações eram seguidas à risca por todos.
"Não dá para esquecer. Me lembro de todas as palavras que disse para ele: "Você não está acostumado a cobrir este tipo de evento, que vem a Campo Grande uma vez ao ano. Não fique em frente aos guard-rails, apenas atrás. Se ficar em cima do barranco, atrás dos pneus, não há problemas. Só não vire notícia". Enchia tanto o saco dos fotógrafos para evitar esse tipo de coisa. E aconteceu por total falta de obediência."
Na ocasião, os profissionais da imagem recebiam um colete verde, com o logotipo da categoria e a palavra "Imprensa" estampados, mas sem numeração e nem exigências mínimas de equipamento. "A Stock Car estava em um processo de crescimento e ninguém esperava. Foi preciso um acontecimento daqueles para que as coisas mudassem", continuou Alves, que representava a empresa de comunicação "Local".
Antes da largada, os fotógrafos eram liberados para seguirem aos locais desejados, tudo de acordo com as orientações do diretor de prova, Carlos Montagner. Ao ficar no minibarranco entre as duas retas do circuito, protegido por duas valas e uma barreira de pneus, Raphael viu uma equipe de televisão pular a vala para gravar uma chamada na beira da pista quando os carros já percorriam a reta oposta. E foi junto.
Só que, com os carros alinhados no grid, a equipe da TV regional se retirou do local. Raphael ficou. E Montagner explica o fato de não ter visto o jovem fora da área de segurança e o retirado. "Antigamente, a largada era parada. Então, ficava de olho nos controles. Quando foi autorizada a volta de apresentação, o Raphael não estava lá. No momento em que fiquei virado em direção ao local, não o enxerguei".
Alves notou a presença do fotógrafo no local - sem conseguir identificar quem era, - e se desesperou. "Quando os carros saíram, vi ele no local proibido e passei a reclamar com o Doro [Jr., dono da Local, parceiro do jornalista na assessoria]. "Eu falei, pedi para não ficarem ali, mas olha lá". Ele me respondeu: "Senta aí, agora não dá para fazer nada". Daí pra frente, virou história."
Outro que percebeu a irregularidade foi o narrador da categoria no autódromo, Chicão. "Como sempre faço, dei a orientação para todos deixarem o grid, mas ele não me ouviu e seguiu andando pela grama. É o que costumamos chamar de risco causal. Era como se um bêbado quisesse atravessar a Paulista às 13h fora da faixa".
Diante deste panorama, a largada foi autorizada. David Muffato e Giuliano Losacco dividiam a primeira fila, seguidos de Cacá Bueno e Guto Negrão. Mas as atenções acabaram se voltando para outro piloto: Gualter Salles, que partira na 12ª colocação.
Durante a disputa de posições, Salles recebeu um toque de Nonô Figueiredo. O carro do piloto da Vogel, desgovernado, saiu da pista bem em direção a Raphael. "No momento do acidente, ele não só estava fora do limite permitido, mas, também ao lado da placa de 100 metros. O Promotor do caso disse que eu não devia ter autorizado a largada, mas não havia visto o garoto. Claro que, se tivesse visto, solicitaria sua retirada imediatamente", explicou o diretor de prova.
O fotógrafo tentou correr, mas não deu tempo. Foi acertado de lado pelo carro do piloto carioca e jogado para longe. Em seguida, Gualter capotou ao ter contato com a vala. A imagem do impacto, registrada pelo fotógrafo Márcio Rodrigues, impressiona: é possível ver a máquina, o sapato e a carteira de Raphael voando, com o corpo do jovem no ar. Meses depois, a foto, intitulada "Vôo para a morte", recebeu o Prêmio Esso de Fotografia daquele ano.
A largada foi prontamente cancelada e o médico oficial da categoria, dr. Dino Altmann, foi o primeiro a chegar ao local, sem saber do atropelamento. "Estava no carro médico, atrás do grid, e não vi ele ser atingido, apenas o carro do Gualter. No momento em que fui atender o Gualter, me avisaram que havia um garoto no chão."
"Quando cheguei, ele estava com as pupilas dilatadas e já tinha tido uma parada cardiorrespiratória e tentamos reanimá-lo tanto lá quanto a caminho do hospital", relatou Dino. Alves, por sua vez, foi correndo ao local para retirar a quantidade de curiosos que se aglomeravam em volta de Raphael e da equipe médica.
"Saí correndo da sala de imprensa, até o local do acidente. Os médicos já estavam atendendo o garoto, fazendo massagem cardíaca. Quando olhei para ele, os olhos já estavam virados e logo vi que a coisa não estava boa. Só que muita gente estava em cima, filmando e fotografando, e fui pedindo para as pessoas se afastarem e não registrarem este momento, que, definitivamente, não era dos mais agradáveis."
Pelo fato de os coletes não serem numerados, foi difícil identificar quem havia sido atropelado. "Não sabíamos quem era na hora. Como venta muito aqui na região, o colete dele voou no acidente e não conseguimos identificar quem era. Me deram a câmera dele, mas o cartão havia voado no acidente e não tive como saber quem era", falou Milton.
Enquanto isso, no hospital da capital sul-matogrossense, Raphael não resistiu aos ferimentos causados e morreu. Ele foi identificado pela organização apenas no fim da tarde, quando o cartão de uma de suas máquinas foi recuperado pela equipe de cronometragem, que retirava seus acessórios da pista. "Quando vimos as fotos, percebemos que ele fotografou uma parte da largada e virou de costas", completou Alves.
Salles, que ficou chocado com o incidente, emitiu um comunicado à imprensa lastimando o ocorrido. "Nem tenho como expressar o quanto lamento esse acidente. Meus sentimentos e orações vão para a família do Raphael."
A morte, transmitida ao vivo pelo canal por assinatura SporTV, caiu como uma bomba na vida dos envolvidos. Por ser a autoridade máxima da competição, Montagner acabou sendo indiciado por homicídio doloso pelo MPE (Ministério Público Estadual) do Mato Grosso do Sul. Duas perícias foram feitas no autódromo, para avaliar com exatidão a distância em que o rapaz estava da pista e a visibilidade da torre em que estavam os comissários. E foi considerado culpado pelo acidente.
"Foi uma perda sentida, principalmente para os familiares dele. Não tive culpa nenhuma, mas sinto os efeitos disso até hoje. Há um ano e meio, tenho de contribuir mensalmente com R$ 500 para uma instituição de caridade, o que pesa no meu bolso. Isso sem falar no fato de que preciso informar sempre as autoridades quando preciso viajar", comentou o dirigente.
A partir de então, a Stock Car mudou completamente o conceito para permitir a entrada de fotógrafos na pista. "Hoje em dia há uma série de requisitos: o fotógrafo precisa ter um equipamento de acordo com as especificações mínimas exigidas, há o briefing da direção de prova, além de outras orientações e do termo de responsabilidade, onde o indivíduo toma conta dos riscos e compromissos existentes caso aconteça alguma coisa", explicou Braga.
A mudança capitaneada por Alves, aliás, foi estendida para outras categorias, como a F-Truck. "Assim que elaboramos as novas normas, entrei em contato com o Dinho Leme, assessor da Truck, e estabelecemos um padrão para estes procedimentos. Padrão que existe até os dias atuais".
"Quando os fotógrafos são os habitués, que vão sempre às corridas, não tenho receio. O problema é aqueles que fazem jogos de golfe, futebol, e aparecem aqui para fotografar achando que é igual, mas não é", sublinhou Montagner.
E o que mudou depois de tudo isso, cinco temporadas depois? Na parte organizacional, todos os fotógrafos passaram a serem fiscalizados com mais rigor. "Tanto que o próprio Carlos Col [organizador do evento] passou a dar atenção e proibir fotógrafos no local do acidente em 2004. Nos dois anos seguintes, a imprensa passou a ser mais profissional e passamos a qualificar melhor a entrada de fotógrafos na pista", ressaltou Milton.
Só que, mesmo assim, incidentes aconteceram, como na etapa de Curitiba de 2007, quando o fotógrafo do Grande Prêmio, Bruno Terena, devidamente localizado atrás de um guard-rail na curva da entrada do miolo da pista, foi atingido pelo impacto de uma batida de Nelson Merlo, sofrendo escoriações.
"Como ele estava no local correto, sofreu apenas ferimentos leves. Se tivesse no local errado, seria esmagado pelo carro", afirmou Altmann, na ocasião.
Já o circuito permanece sem modificações. Mesmo sendo recente, com sete anos, o cuidado com o local não é dos melhores: o asfalto está bastante deteriorado e muitas das instalações, como escadas, apresentam desgastes visíveis, como corrosão.
"Houve uma maior conscientização e profissionalismo entre os fotógrafos. Nada mais. A pista não mudou nada, mas é segura. Há áreas de escape generosas e o espaço que separa as duas retas é cercado por duas valas, que servem como um guard-rail natural, dotadas de pneus, e os carros não conseguem subir o barranco. Mas, claro, reformas são necessárias", destacou o diretor de prova.
E o que restou aos personagens são as lembranças terríveis do fatídico dia 7 de setembro. "O clima no autódromo estava péssimo. Só que, como foi no meio da temporada, a vida seguiu", relembrou Altmann. "Toda vez que venho para cá, me lembro do menino voando. É uma sensação que ninguém merece passar", afirma Alves, ao olhar para o local.
No entanto, quatro anos, três meses e um dia após a morte de Raphael, o clima de tragédia retornou à categoria, quando Sperafico foi atingido em alta velocidade por Renato Russo na corrida final da Stock Light, em Interlagos. O que provocou, desta vez, uma série de medidas para reforçar a segurança dos carros, principalmente no projeto do novo chassi, que será introduzido a partir do próximo ano.
"O automobilismo é bom, bonito, contagiante, mas mata", encerrou Alves.