Lutas | Estadão | 06/01/2017 11h57

Campo-grandense vira 'super-herói' de crianças carentes em Miami

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Roberto de Abreu Filho chegou em Miami em 2007 para montar sua primeira academia de jiu-jítsu fora de Campo Grande, onde abriu a Fight Sports quatro anos antes. Tinha US$ 800 na carteira e estava pronto para trabalhar, a convite de um americano que estava investindo numa academia com outro sócio. Mas o tal sócio não gostou da ideia de dividir o espaço com outro brasileiro, e se recusou a aceitar a participação e ajuda do campeão de Mato Grosso do Sul. Robertinho, como é conhecido entre os amigos, não teve alternativa. Já estava aqui e não daria o braço a torcer - talvez no tatame, mas jamais na vida.

"Passei fome, comi comida de US$ 1 da CVS [drogaria], morava na academia, não tinha onde dormir, tomava banho lá, e o cara me destratando na frente dos alunos", conta o campeão, hoje com 36 anos, conhecido mundialmente por "Cyborg". "Chorava todas as noites".

Mas não estremeceu. Em três meses, o sócio investidor viu a situação e Roberto assumiu a academia. Só que sem alunos, não tinha renda. Dormiu no chão um ano e meio, com um salário mensal de US$ 600 para viver.

Demorou três anos para virar o jogo. Trouxe dois amigos e professores da Fight Sports do Brasil para ajudar na luta e, a partir de 2010, tudo virou, e conseguiu comprar a academia.

Hoje, além das duas originais em Campo Grande e Miami, Cyborg ajudou vários alunos faixa preta a montar academias em mais de 25 países. Todas levam o nome "Fight Sports".

"O jiu-jítsu não é só um esporte, é uma filosofia de vida, um estilo de vida", diz ele. "Com o jiu-jítsu consegui transformar a vida de muitas pessoas que estavam em minha volta, como transformei a minha. Quando menino era bem travesso, bagunçava bastante, adorava brigar, usava droga, e o jiu-jítsu me tirou disso. Quando consegui ter a visão, falei, vou conseguir ajudar meus amigos e a comunidade".

E agora seu novo desafio é transformar a vida de crianças carentes em Miami, começando por uma escola no bairro de Liberty City, um dos mais pobres e violentos da região. "Aos poucos quando você acredita nos seus sonhos do fundo do seu coração, o universo conspira para fazer tudo acontecer para você", diz. "Sempre tive as pessoas certas entrando no meu caminho, o apoio de pessoas de coração muito bom, e Deus, que sempre me deu as oportunidades certas no momento certo".

O californiano faixa preta Ryan Jardine, de 35 anos, é uma dessas pessoas. Ele passou um ano treinando em Teresópolis, na Academia Pitbull Jiu-Jitsu, e há nove é professor de leitura na escolinha Holmes Elementary, de onde vem esse novo grupo de alunos de baixa renda. Ryan é o coordenador do projeto, que começou com 16 alunos de 8 a 11 anos, batizado de Project "Grapple", outro termo em inglês usado para luta corpo-a-corpo.

"Jiu-jítsu é perfeito porque dá o que gente precisa. Se você é um cara meio fora do controle, jiu-jítsu vai dar disciplina; se você é um cara mais tímido, jiu-jítsu vai dar confiança; se você é um cara que gosta de brigar, jiu-jítsu dá um lugar para você gastar essa energia", diz, em português, o professor americano, que também treina na academia e é aluno do Cyborg. "Jiu-jítsu pode dar o remédio perfeito".

A academia Fight Sports, responsável pelo projeto, arca com todos os custos - dos uniformes e "kimonos" aos treinos e viagens de competição. "O jiu-jítsu é um esporte que proporciona uma conexão muito forte entre as pessoas, um senso de amizade, de família, de união, e isso ajuda muito", diz Cyborg. "As crianças ficam perturbando os pais para virem treinar porque é a única forma de elas se sentirem 'super-heróis' e extravasarem, saírem dos seus problemas. Só Deus sabe o que passam no cotidiano; as dificuldades que têm em casa".

Maurice Thomas é um dos pioneiros do Project Grapple. "Me sinto melhor", diz o menino de 9 anos que treina desde o início do projeto. "Muitas pessoas sofrem bullying. Gosto de poder defende-las. Antes eu ajudava, mas não tanto".

Mas ainda o maior impacto do jiu-jítsu na sua vida foi quando sua avó faleceu de complicação no pulmão. "Jiu-jítsu me ajudou", diz, emocionado, e conta que o esporte foi muito importante para ele lidar com a perda.

"É muito lindo poder sentir isso nas crianças, ver a alegria nos olhinhos quando estão praticando o esporte, poder fazer parte dessa evolução deles, e levar esperança não só para eles mas para toda 'Liberty City' é uma coisa muito especial", diz Cyborg, que conquistou o apelido e o título depois de um acidente de carro, por milagre não fatal.

"Foi uma tragédia que me transformou no Cyborg", diz. "Escolhi ser o Cyborg. Vim de um lugar super humilde, morava na fazenda e consegui conquistar o mundo - só porque acreditei muito em mim". Tinha 20 anos na época. "Era um moleque inconsequente, saindo de uma festa para outra, capotei. Fui jogado para fora do teto. Estava dirigindo sozinho, graças a Deus", diz ele. "O médico falou que não iria mais mexer meu braço, e consegui voltar a ser campeão de uma forma que não tinha sido antes".

Naquele momento Robertinho tomou consciência do que havia dito para um menino quando tinha 15 anos: era e sempre seria seu próprio "super-herói". E é isso que tenta ensinar e passar para as crianças na sua academia. "Acho que ser campeão não é o momento, não é só você subir no pódio e ter uma medalha. O campeão é campeão todos os dias de sua vida, é uma atitude. Sempre quis ser um campeão - não campeão de medalhas, mas um campeão na vida. O 'Cyborg' foi um sonho que conquistei", diz.

Maior lição que aprendeu com jiu-jítsu? "Você pode se superar todos os dias. Vai apanhar muito e no próximo dia ter que voltar e batalhar tudo de novo. Na vida não é diferente. Você cai mil vezes até conseguir ficar de pé; e vai falhar muito, perder, mas tem que acreditar em você, e saber que vai voltar, não pode desistir".

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